A fome tem pressa: “É Tudo Pra Ontem”!
- Elaine Silva
- 1 de set.
- 6 min de leitura
Cozinha-escola atende populações em situação de rua em 18 territórios de São Paulo com apoio de uma potente rede de solidariedade

O Pegada Sustentável é a forma que encontrei de trazer propósito para minha vida. Faço isso contando histórias de impacto socioambiental. Às vezes, penso que o que faço aqui é irrelevante, afinal, estamos falando de um blog com alcance restrito. Mas será mesmo? O fato é que, se apenas uma pessoa ler, se mobilizar e indicar histórias, todos os sábados que passo decupando entrevistas e escrevendo já terão valido muito a pena.
A história desta edição, por exemplo, foi sugerida pela minha cunhada, Daniele Verillo, que acompanha o Pegada e sempre incentiva. E a trajetória do coletivo “É Tudo Pra Ontem”, da chef de cozinha Cintia Sanchez, é um exemplo clássico de que uma andorinha não apenas faz verão, mas também é capaz de mobilizar, metaforicamente, outras andorinhas, criando, assim, uma rede potente de solidariedade.
O nome “É Tudo Pra Ontem” foi cedido pelo rapper Emicida, inspirado na faixa homônima que fala justamente da urgência da fome. Aliás, a música do Emicida, por sua vez, dialoga com o poema “A fome tem pressa” do sociólogo e ativista Herbert de Souza, o Betinho.
Quando tudo começou, Cintia Sanchez já tinha passado por uma migração profissional da fotografia para as cozinhas. A chef tentou uma vaga na versão amadora do MasterChef, em 2014, mas não conseguiu o avental na primeira tentativa. “Fui muito hostilizada naquela época e senti a necessidade de voltar para as bases. Foi então que me aproximei novamente do trabalho do padre Júlio Lancellotti, que conheço desde que tinha 7 anos, na Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo”, conta.
Essa aproximação não foi apenas um reencontro pessoal, mas também um despertar para a urgência de um problema coletivo. Este ano, finalmente, o Brasil saiu do mapa da fome, mas o alimento não deveria ser tratado como um dever e sim um direito. E não houve, em tempo recente da nossa história, realidade tão dura e exposta quanto a da fome no auge da pandemia de Covid-19. Foi justamente nesse cenário que as histórias se entrelaçaram.
“Eu tinha várias festas e agendas para cumprir nos meus negócios de gastronomia, mas tudo foi fechado. Então, junto com os meus parceiros de negócio, decidimos doar os alimentos do estoque, que estragariam se não fossem consumidos, para a paróquia do padre Júlio. Naquela época não tínhamos a menor ideia do que viria pela frente”, lembra Cintia. A chef também teve que fechar seus negócios de gastronomia. Em paralelo, várias unidades do Bom Prato — programa social do Governo do Estado de São Paulo, criado em 2000 para oferecer refeições de qualidade, nutritivas e a preço acessível para a população de baixa renda — também foram fechadas. “Fui literalmente para o front de batalha. Me disponibilizei para cozinhar e reabrimos o Bom Prato no bairro da Lapa. De repente a gente teve que usar máscara. De repente a gente era privado de sair à rua. Tudo estava fechado. Virou uma escuridão, e eu quis ser luz no meio dela”, revela. Nos duros anos da pandemia da Covid-19, a fome estava ainda mais presente e latente. As crianças, por exemplo, estavam presas em casa. E, na periferia, muitas vezes a refeição escolar era a única do dia. Cintia conta que, na pandemia, viu gente que não tinha o que comer revirando o lixo. “As pessoas que dependiam daquela alimentação no Bom Prato, por exemplo, na maioria idosos, me agarravam e falavam que eu era uma iluminada, e naquele momento eu realmente me senti como luz na escuridão.”
Depois dessa reabertura do Bom Prato, Cintia não parou mais. Ela uniu forças com alguns amigos para levar alimento ao povo. A partir daí, várias pessoas passaram a procurá-la para ajudar e, quase que organicamente, surgiu o estalo de criar uma rede de solidariedade. “Começamos com uma vaquinha na internet que tinha por objetivo distribuir cestas básicas naquele momento de caos social. Em diversos territórios, eu e meus amigos fomos abrindo várias frentes. O impulso vinha da ânsia, da necessidade de alimentar gente”, conta.
Passados cinco anos daquele momento fatídico, a cozinha solidária do “É Tudo Pra Ontem” se tornou uma cozinha-escola que visa não apenas alimentar, mas também formar multiplicadores, nutrir e gerar pertencimento. Além do trabalho na cozinha, o coletivo atua em colaboração com o projeto Banho Pra Geral, que oferece serviços de higiene à população de rua, principalmente em locais onde faltam políticas públicas. Hoje, são 18 territórios atendidos e uma enorme rede de voluntários envolvidos, direta ou indiretamente.
Alta gastronomia popular e memória afetiva
Na cozinha do “É Tudo Pra Ontem” não entram alimentos ultraprocessados somente produtos orgânicos e de assentamentos do MST (Movimento Sem Terra). O que Cintia faz é alta gastronomia popular. “A gente cria em cima do que tem disponível. Contudo, é muito mais do que oferecer comida quente e nutritiva.” E completa: “Para mim faz sentido, por exemplo, acessar a memória afetiva por meio da comida”.
Ela conta que já aconteceu de oferecer um simples arroz doce que remeteu à lembrança de uma avó ou de alguém querido da família daquela pessoa que hoje vive em vulnerabilidade. Afetadas pelo uso de substâncias químicas, muitas dessas pessoas estão condicionadas a uma vida atrelada à violência e à escassez, e não são vistas como humanidade. Mas cada indivíduo já teve uma história pregressa. “O alimento conecta a alma porque é afeto. Por mais que, para mim, a cozinha seja uma técnica, uma ferramenta útil, o mais importante nesse trabalho são os afetos.”
Os recursos para as ações do “É Tudo Pra Ontem” vêm de diversas fontes: doações de indivíduos, parcerias com instituições como o Instituto Chão, Tarta Pão, CESP, Banco de Alimentos e apoio governamental por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Em 2023, Cintia competiu na 5ª temporada do MasterChef Profissionais e conquistou visibilidade que potencialmente contribuiu para sua atuação com o projeto.
Direito à comida como política pública
O sonho da Cintia é que o restaurante-cozinha-escola se transforme em uma política pública e seja implantado em muitas outras cidades brasileiras, quem sabe pelo mundo. A necessidade de alimentar no contexto de uma boa comida, seguindo os princípios básicos de uma alimentação que realmente sacia, é o que move essa mulher extraordinária. “Minha comida é uma expressão política daquilo que eu sou. Eu luto para que o alimento seja um direito garantido, como está escrito na nossa Constituição, e não um dever do povo se alimentar. É meio utópico, mas eu tenho vontade de alimentar o mundo.” E complementa: “O que me impulsiona é o sentido de servir, ser útil, de agregar à nossa comunidade.”
Durante sua jornada, Cintia foi cruzando com parceiros que acreditam no que ela define como loucura: a sua utopia de alimentar o mundo. Contudo, também enfrentou preconceitos e obstáculos por atuar diretamente com a população em situação de rua. Ela foi aprendendo a lidar com isso. Conta que, nos dias mais difíceis, quando, por exemplo, não tem nada para cozinhar ou vê injustiças sociais, violência e abusos, o que a mantém firme é esperançar. “Eu enxergo como uma obrigação mesmo. Eu venho de uma família de terreiro, de umbanda, e a nossa obrigação era alimentar a gente. Então, tudo o que vivo no dia a dia me leva lá atrás, para aquela criança que sonhava alimentar o mundo, e hoje eu alimento gente. E eu espero mesmo que a minha atuação se torne cada vez mais política.”
Alimento em forma de amor
Eu, Elaine, autora desse texto, demorei muitos dias para escrever esta matéria porque queria ouvir a entrevista com todo cuidado, ser respeitosa com a história da Cintia e de toda a falange de almas que a cerca, das histórias das pessoas em recuperação, das almas resignadas que ela também traz em si. Eu sei (e sinto) que, cada vez que uma alma toca a outra, elas convergem. Somos todos povoado, nunca estamos sós.
Entendi que o cerne dessa história não é o alimento — que sim, é combustível vital para a vida — mas, para além disso, esta é uma história sobre amor genuíno, muito além das fronteiras de quem entende o amor romântico em casal como a única forma de amar. Aqui estamos falando de uma potência que ultrapassa qualquer barreira.
Tem um filme que é meu preferido da vida, o Interestelar — e desculpe, vou dar spoiler — que mostra o amor como força além do tempo e do espaço: “O amor é a única coisa que somos capazes de perceber que transcende as dimensões do tempo e do espaço.”
E é isso que a Cintia, com o “É Tudo Pra Ontem”, prova!










































Muito legal!👏👏
Excelente